Tuesday, 26 June 2007

Quase 30



Não muito longe, ouço uma locomotiva. É daquelas a vapor, e há várias criaturas a deitarem madeira para a sua bocarra insaciável.

Imparável, ouço-a aproximar-se, e o chão começa a vibrar. Até os pássaros se calam.

É o comboio dos trinta. Sei que vai chegar em breve e que não posso ficar em terra, tenho que subir e continuar. Mas é como se já tivesse parado, como se eu já estivesse a bordo. Vagueio pelos primeiros sintomas como um passageiro no vagão-restaurante, de copo na mão.

1. Este impulso absurdo por tapetes, tapeçarias e velharias. Nunca me deu para este lado. Agora passo à frente das lojas, olho segunda vez, penso "será que era complicado de levar isto no avião". Com as lojas de velharias, tenho um arrebatamento tal que tenho que pensar em coisas horríveis para resistir à tentação de entrar...

2. Um súbito interesse por política e economia mundial. Dou por mim a procurar informação sobre "os conflitos no Médio Oriente", ou a "história de Cuba", ou o "Líbano". Inexplicável.

3. Esta sensação paradoxal de que por esta altura já devia ou ter um filho, ou um doutoramento.

Eles vão chegar, os trinta.

Sunday, 24 June 2007

"Idiossincrasias idiomáticas"

O clima e a côr de pele não deverão deixar o estrangeiro induzir-se em erro. Embora as pessoas aqui não considerem que estão em África mas sim no Maghreb ("Pôr-do-Sol" - dos territórios muçulmanos, uma vez que estão efectivamente no Poente dos mesmos), as "vias de desenvolvimento" ainda não atravessaram propriamente o mar Mediterrâneo. O idioma misto das ruas da capital tem um vocabulário essencial a descodificar:

c'est bon
serve para dizer que ok em toda e qualquer situação

y a pas problem
expressão preocupante que indica a existência de problemas inssolúveis, especialmente se associada com a expressão incha'Allah

incha'Allah
se Deus quiser (por vezes quer dizer "eu não vou contrariar a vontade divina, e se isso significar ficar tudo exactamente como está, seja")

nooormal
c'est normal
quando acontece alguma coisa que o estrangeiro não espera mas que aparentemente é perfeitamente esperável

tranquil
árabe argelino ou "dialectal" para designar "tranquil" em francês ou "tranquilo" em português - serve para tentar acalmar o estrangeiro em pré-histeria quando se lhe apresenta uma situação "normal"

mon ami
serve para os homens se chamarem uns aos outros; pode querer dizer "traga lá os cafés de uma vez por todas, que já pedimos isto algumas cinco vezes" ou noutras situações, ironicamente, "deves pensar que andámos na tropa juntos"

saha merci
literalmente "saúde obrigado" ou "obrigado obrigado"

Sunday, 10 June 2007

Ah, a sedução mediterrânica...

Em Lisboa, passo despercebida. Aos 18 anos, não percebia muito bem porque é que as miúdas da minha onda se queixavam - ele era homens das obras, ele era homens nos cafés, comentários brejeiros, ordinários ou mesmo ofensivos. Sempre me passeei com a minha cara n.º17, não-me-chateiem...

Aqui em Argel, é todo um novo universo cultural. A dúzia de palavras em árabe que conheço não me permitem transmitir-vos (nem tão pouco entender) os "cumprimentos" que recebo diariamente no percurso de e para casa, nas paragens de autocarro ou no trajecto a pé.

Recentemente, no stand da empresa na Feira Internacional de Argel descobri o "subtil" charme masculino local - esse tesouro escondido do Norte de África. É um povo mediterrânico a 100%, a quem não falta, Al-Hamdulillah (graças a Deus), o azeite e a azeitona, a linguagem gestual, os citrinos e as nêsperas, o bigodinho, a mestria do mar e das suas técnicas. E foi aqui que enriqueci mais uma vez o meu vocabulário francês.

draguer
verbo transitivo

1. dragar;
2. (pesca de moluscos) pescar com rede em forma de bolsa;
verbo intransitivo
(coloquial) seduzir, engatar;

Eis-me vestida de preto, simples, como se trabalhasse nos bastidores de um teatro (uma tentativa de invisibilidade, digamos, para deixar sobressair os painéis da empresa, magníficos, aliás) e eis-me também embrulhada no diálogo que descrevo de seguida

- És tão gira (dizem dois homens nos seus cinquentas, a entrar no stand)
- Boa tarde. Os senhores entraram aqui só para dizer isso? É que eu estou aqui para apresentar uma empresa...
- Ah, não, mas sabes, é que nós somos arquitectos e tu és tão gira e...
- ...vou falar-vos na empresa ou atender as pessoas que estão à espera?
- Oh não, de todo, dizem eles ao mesmo tempo que se sentam nas cadeiras ao meu lado, queremos saber tudo sobre a empresa, ainda por cima uma empresa que tem obras tão bonitas como estas, e uma pessoa tão bonita para nos falar nelas, sabes, Deus criou o Mundo e a Beleza, nós como arquitectos gostamos de tudo o que é belo e...
- (...e entretanto puz a cassette do início e comecei a lenga-lenga de a empresa faz isto e aquilo, tem x anos, trabalha em todos os sectores de tal e tal, tem obras aqui na Argélia desde bla bla e nos sítios a, b, e c. Aqui estão as coordenadas da empresa e do Director-Geral, "veuillez nous envoyer un fax avec vos reinseignements" ao que eles respondem
- Oh - mas não está o teu número de telefone aqui no cartãozinho, pois não? Era muito melhor se pudéssemos contactar-te directamente...

É capaz de não ser nem política nem profissionalmente correcto descrever aqui a forma como lhes expliquei que só dou o telefone da empresa. Mas admito que fiquei espantada com a versatilidade destes meus semi-colegas de métier - eles imaginam, eles desenham, eles constroem, e até se dedicam à pesca.